A bem da verdade, eu nem queria estar escrevendo essa resenha. Queria continuar deitada na minha rede, abraçadinha com meu Kindle, sorvendo meus últimos minutos de memória recente desse livro maravilhoso que é Os pequenos homens livres (The Wee Free Men). Mas me forcei a sair do meu transe pós-livro para aproveitar esse sentimento e transportá-lo para um texto.
Tem um tempo que não leio Pratchett. Desde Mort, que li ano passado (outro primor de livro que não cheguei a resenhar aqui).
Para variar, Terry Pratchett me arrebatando com seu brilhantismo e lucidez sobre o que é ser uma pessoa nesse mundo. Leio os livros de Discworld desde a adolescência, mas nunca li todos os quarenta e dois volumes. Sigo nessa missão, e acho que no dia em que terminar, vou ficar bem triste por não ter nada novo desse universo para ler (sim, eu sei que tem ainda os atlas, almanaques e outros livros suplementares à série… mas mesmo assim). Saboreei The Wee Free Men desde o primeiro parágrafo até a última palavra nas notas do autor, e que viagem maravilhosa foi essa! Eu já li vários livros das bruxas de Discworld (é a saga que mais li, na verdade), e foi um prazer imenso conhecer Tiffany Aching — que no Brasil virou Tiffany Dolorosa, algo absolutamente maravilhoso.
Dizer que o livro é sobre autodescoberta é pouco. Os pequenos homens livres fala sobre luto, injustiças das mais dolorosas (que não podem ser consertadas num passe de mágica), família, autoestima e, sim, autodescoberta também está lá no meio. O livro foi publicado pensando no público infanto-juvenil, mas é daqueles livros que lendo em qualquer idade você vai se deliciar e se divertir imensamente. Talvez seja até mais doloroso para adultos, que talvez possam visualizar com mais clareza os problemas da vida real que cercam a protagonista de nove anos, mas será uma viagem fantástica, como qualquer livro de Discworld. Tiffany me lembra muito Esk, de Direitos Iguais, Rituais Iguais (Equal Rites), livro que inicia propriamente a saga das bruxas de Discworld. Assim como Eskarina, Tiffany é inteligente. Não inteligente no sentido estudiosa, e nem sequer no sentido “street smart”, mas da forma mais verdadeira da inteligência: ela é curiosa e observadora. Tiffany quer entender o mundo em que vive, como ele funciona, quais as regras ocultas que os adultos não parecem falar (ou sequer entender).
Isso é uma coisa que admiro muito na obra de Pratchett — suas crianças não são infantilizadas, apesar de serem crianças. Elas são pessoas. Pessoas pequenas, é verdade, e ainda não completamente donas de si, e ainda confusas sobre o mundo e sobre elas mesmas, mas com toda a riqueza psicológica que um ser humano que já sabe o básico da vida (como andar e falar) traz consigo. Tiffany é analítica, racional, curiosa: uma mistura perigosa. Uma mistura que a leva a ser identificada como uma bruxa (isso e o fato de carregar um barbante consigo para todo lado). Cercada por pequeninos homens azuis, os Nac Mac Feegles (uma subespécie muito específica do elfo folclórico britânico, criada por Pratchett e completamente inspirada no escocês histórico mais caricato que você possa imaginar), Tiffany vai em busca de seu irmãozinho sequestrado pela Rainha da Terra das Fadas, uma terra repleta de sonhos, pesadelos e miragens, e onde nada é real. Durante essa aventura, com direito a cavaleiros sem cabeça, cães infernais e criaturas que te prendem dentro do seu próprio sonho, Tiffany passa por uma outra aventura interna, que envolve o luto pela sua avó falecida, seus sentimentos conflitantes em relação à sua família (e em especial ao irmãozinho mais novo que tanto lhe dá trabalho e “rouba” o afeto dos pais), e quem é ela e qual seu lugar no mundo.
A sagacidade característica de Pratchett leva a história de forma maravilhosa. Nas primeiras páginas, já deu pra notar: esse seria um favorito meu. E realmente foi.