Paulo Moreira 🇧🇷 reviewed Lágrimas de carne by Fernanda Castro
Uma surpresa sombria e triste
4 stars
Não esperava que Lágrimas de Carne fosse tão sombrio, mesmo com palavras tão bonitas. Comecei o conto despretensiosamente, perdoem-me, encantado pela capa. Eu nem sabia onde se situava, supunha que em algum mundo fictício inspirado no barroco de Minas Gerais. A localização também foi uma grata surpresa: na caatinga.
A história é de duas criaturas meio-humanas, meio-pássaros, que no primeiro momento a gente não sabe por que são assim, mas que depois vai ter a sua explicação. A principal é uma garota com asas de rasga-mortalha que acompanha os funerais para aprender sobre os seres humanos. A segunda é um garoto com asas de carcará, mantido preso em casa.
A relação com a morte ultrapassa o simbolismo. A mãe dos dois é uma carpideira, responsável por chorar durante os funerais. Num conto fantástico, é lógico que ela também tem atributos fantásticos. É ela a responsável por purgar as almas dos pecadores. De uma forma macabra, diga-se de passagem, utilizando seus dois filhos metade-pássaros.
Volto a falar deles e de como são um contraste um do outro, o que vai se mostrar essencial para a conclusão do conto. A metade rasga-mortalha é Suindara, de asas douradas, a única que a mãe deixa acompanhar durante os funerais, embora escondida, para aprender sobre a raça humana. É ingênua e conivente aos abusos da mãe. Sim, porque como disse, a mãe carpideira usa métodos macabros em seus feitiços, aproveitando-se da natureza mágica dos filhos, em especial de Carcará, o garoto, a antítese de Suindara, de espírito rebelde, que odeia a mãe e por isso é mantido preso em casa.
Mais tarde vamos entender todos os motivos da mãe, tanto por que os mantém escondidos, quanto por que continua usando esses feitiços assustadores. A terra de Serrita é um local hostil. A busca por ouro desperta o pior nas pessoas que precisam desse ouro para sobreviver. A mãe e seus filhos fantásticos não ficariam ilesos a tanta ganância.
Mãe, filha Suindara e filho Carcará entram em conflito.
Foi uma sacada de gênia intercalar o presente dos meninos com cenas soltas que a gente entende como o passado de alguém, mas que no início não fica muito certo de quem e se essas cenas terão alguma importância para os personagens. Acaba adicionando mais tristeza ao resultado do conflito.
Temos um fim trágico que não seria tão trágico se não houvesse essas cenas. E não sentiríamos tanto o peso dessa tragédia se as cenas fossem apenas contadas por alguém. Por serem vistas, senão vividas por nós, embora em parágrafos curtos, a tragédia acaba por nos afetar também.
Ainda sobre o fim, reitera-se o contraste entre os irmãos. Carcará é relacionado ao Demônio, enquanto Suindara, ao Anjo, mas de forma bastante criativa. Carcará é demônio porque anseia por liberdade. Suindara é anjo por sua ingenuidade. Os dois compartilham a morte, associadas ao gavião diurno carcará bem como à coruja noturna rasga-mortalha. Os dois compartilham o pecado originado pelo conflito, mas traçarão jornadas separadas.
Lágrimas de carne me deixou encantado. Palavras poéticas em uma história de morte, tragédia que anuncia esperança. Posso ter acertado na inspiração barroca devido ao tema fúnebre e a presença de tantos contrastes que a capa me fez supor (anjos também são bem comuns no barroco, lembro-me agora), mas isso só a autora gênia para confirmar. O prêmio Odisseia foi mais que merecido.
